quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Festa e confusão dionisíaca.


A perda do verdadeiro significado antropológico das celebrações festivas é um fenômeno antigo que se intensifica de forma intermitente e não uniforme ao longo da história. O abismo existente entre os propósitos genuínos que justifiquem a natural necessidade do ser humano por festas e a reprodução artificial de estados de euforia; é oriunda basicamente da ausência de plenitude na vida humana e em última análise, na perda da noção de transcendência e de um certo niilismo que, cego aos valores superiores, busca desesperadamente embriagar-se em um êxtase de experiências sensíveis.

Apesar de ser uma mazela presente em todas épocas, é justo ponderar se essa "confusão dionisíaca" não tem se exacerbado nos últimos tempos. Não é necessário ser nenhum Zygmunt Bauman para perceber que a maioria das pessoas tem deturpado o significado clássico de palavras como "lazer", "ações lúdicas" e "festa", compreendendo-as todas como "diversão".

Diversão vem de "di-vertere" que significa "verter-se para fora". Realizamos ações lúdicas por elas próprias, não para nos divertir. "Quem não é capaz de interessar-se radicalmente por nada nem por ninguém, se entedia, e para sair do tédio tem de se consumir na diversão"(Polo, L. Hegely el posthegelianismo). Quando a diversão passa a ser o fim pretendido no lazer e não sua consequência, já caiu-se em uma forma de existência na qual foge-se do aborrecimento de si mesmos pois não há nada além do vazio.

Quando a diversão converte-se em fim do lazer, o indivíduo vê-se, com efeito, obrigado a procurar fora, aquilo que não tem dentro (fins, valores, objetivos, em suma, a felicidade). Trata-se de um ativismo externo, uma ausência de interioridade, que se traduz no que se chama hoje de "superficialidade". Pessoas que padecem desse mal são pessoas "cheias de palha", dando importância àquilo que não tem, ao que é volúvel e inconstante; tendo uma atuação que não manifesta nada de íntimo pois é em si pura aparência; refletida na incapacidade de dialogar e de dar-se a conhecer, pois não há o que mostrar, não há um dentro.

A vivência do ócio, porém, implica em "instalar-se na plenitude e celebrá-la". O lazer nos desliga do sério e do custoso e é nele que o homem se eleva do campo da necessidade para o campo da criação e da contemplação, se ocupando com ações lúdicas que são um fim em si mesmo e não apenas um meio para diversão. O lúdico é atitude que o homem tem quando possui a plenitude, uma atitude de percepção receptiva da realidade de um indivíduo com riqueza existencial. É bem verdade que o divertido pode acompanhar o lúdico, porém não é sua condição necessária nem suficiente.

Nesse sentido é que reside a dignidade e importância da  festa, entendida como a esfera de consumação própria da celebração da plenitude humana, uma ação afirmativa a respeito da totalidade do real, um reconhecimento agradecido da vida que ali transborda significado e plenitude. Nela comemora-se algo importante e valoroso conseguido com seriedade, suor e sacrifício ou que se tenha recebido de forma gratuita. Na festa verdadeira faz-se presente uma realidade transcendente.

A alegria e o motivo da festa não são criados por alguém, mas vem dados por um presente que se recebe e é justamente o que se celebra. Festa é alegria mas alegria com motivo. Ubi caritas gaudet,ibi est festivitas (onde o amor se alegra, ali existe festa). Festa é, portanto, reconhecimento alegre do dom recebido e uma forma suprema de manifestação do sentido da vida e do mundo. E não há maior forma de afirmar o mundo, a vida e a totalidade do real do que reconhecer a bondade e a transcendência das próprias origens. Não há maior e mais radical afirmação do mundo e da vida do que a glorificação do Criador. A festa autêntica inunda, portanto, todas as dimensões da vida humana mas nasce sobretudo da dimensão religiosa.

Nesse sentido a celebração litúrgica é a forma mais festiva de festa, pois nela se venera e homenageia a Deus pelo que fez e pelo que é. "Não se pode pensar uma base mais radical, mais voltada para raiz, da bondade existencial de tudo o que é real, que o próprio Deus" (Josef Pieper). "Celebrar uma festa significa colocar-se na presença da divindade" (Odo Casel). Diz-se, portanto, que a felicidade tem forma e conteúdo de festa justamente porque nela ocorre uma plenitude que transborda.

Faltando esse motivo, pode até ocorrer celebração mas não haverá festa. E quando não há verdadeiro motivo, torna-se o próprio homem o espetáculo festivo. A desordem comportamental da sociedade hodierna reflete-se justamente nessa produção em massa de festas artificiais, festas sem substância que não passam de simulacros de ações simbólicas. A escassez de festas genuínas dos dias atuais é portanto sintomático da perda do sentido religioso da vida humana.

Toda indústria do carnaval e da "realização de eventos"  gravita em torno dessa pobreza existencial, reflexo do processo de imanentização e secularização da sociedade contemporânea e da consequente condição de miséria espiritual que recai o homem dos nossos dias. Na ausência de festas autênticas 'o sério' cresce a tal ponto que temos de fugir dele. Nesse aspecto particular talvez tenhamos substituído as festas por férias ou nos encaixemos no  perfil do " homem light" de Enrique Rojas.

"Confinado em espaços e horizontes estreitados pela negação peremptória da metafísica, sob muitos aspectos, o homem dos nossos dias vive entorpecido pela mediocridade, acostuma-se ao que há de mais baixo e barato, reagindo mimeticamente a fim de reproduzir estereótipos, incapaz de elevação justamente porque embrutecido pelo peso da imanência e enfeitiçado pela sedução materialista. Já não nos sobram espaços de profundidade, nem de silêncio, nem de auscultação do caminho, nem de meditação para descer às raízes das questões que a inteligência nos põe, nem da sensibilidade para alimentar e perceber a distinção que há entre o nobre e o fútil, o caro e o barato, o superficial e o profundo, o que tem valor e o que não presta, a verdade e a mentira. O cinismo e o vazio nos secaram a alma e já não nos espantamos ante as mais descaradas afrontas morais, nem esboçamos reação alguma ante o desprezo de princípios éticos e espirituais outrora inquestionáveis. Já não mais nos envergonhamos ante o vergonhoso, ante o horrendo, já não nos assustamos ante o assustador, pois admitimos a mediocridade como meta e desonestidade como virtude."