quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

História da Igreja: Uma consideração intempestiva.


Em tempos de amnésia e de ignorância história programada, de deterioração da línguagem e do pensamento, em que se encontra amplamente perdidas ou assaz indistintas (na consciência do público em geral e, sobretudo, das gerações mais jovens) as coordenadas do passado, as raízes e a configuração multissecular da nossa cultura, é sempre oportuno e benéfico revisitar as suas origens, aperceber-se do seu perfil profundo e bem marcado, mesmo que seja através do percurso cronológico, sinuoso e constrastado, por vezes indecoroso, de uma das instituições que mais marcaram a Europa, que mais a desafiaram, que mais a perturbam: a Igreja Católica.

Sabemos que a memória, por natureza, é já seletiva nos seus processos e nos seus objetos. Mas custa-nos reconhecer, resistimos a confessar que ela, quando nossa, se torna unilateral, partidarista, deformadora e falsa na obediência e na rendição a preferências subjetivas, sejam estas de hostilidade renitente ou de adesão apaixonada. Muitas vezes, porém, nem sequer chega a ser memória, mas antes um novelo de dados isolados e desconexos, de notícias soltas, de suposições nevoentas, de preconceitos ociosos, de argumentos acríticos. E como já argutamente, na segunda metade do século XIX, reconhecia o Cardeal John Henry Newman - "quando a lógica falha, os homens tornam-se pessoais; é seu modo de apelar para os seus elementos primários do pensamento, para seu sentido ilativo, contra os princípios e juízos de outrem" - ou seja, quanto menor é o conhecimento efetivo de um objeto, tanto maior é a força com o que o elemento subjetivo e arbitrário irrompe na consciência e na expressão a seu respeito, tanto maior também a margem de erro e de falsidade do discurso.

E se o objeto do juízo histórico (e da memória expressa) de muitos for, por exemplo, o cristianismo ou o Catolicismo? Então o caso agrava-se, pois esta entidade institucional, mais antiga do que todas as nações européias, com tamanha história, com tantos efeitos e influências culturais, com todas as marcas das fraquezas e das contradições humanas e com a revindicação da sua missão divina, a ninguém permite neutralidade ou indiferença.

Historiadores há, como René Remond, que constatam na Europa, nas últimas três décadas, um aumento, aparentemente orquestrado e nutrido nos meios de comunicação, do descrédito do cristianismo, sobretudo da Igreja Católica, especialmente no plano intelectual. René Remond chega mesmo a falar de uma "cultura de desprezo", de um conformismo generalizado no sarcasmo ou na irrisão em face do Catolicismo, contra o qual todos os insultos são permitidos na imprensa, na televisão, na literatura, nas novelas históricas, no cinema, nas artes plásticas e performativas, enquanto se nota uma maior consideração e deferência perante outras grandes religiões como o judaísmo, o islamismo e sobretudo o budismo.

Nos EUA, dois autores, Vincent Carroll e David Shiflett, denunciaram também, há pouco, no contexto do politicamente correto e de um secularismo militante e fundamentalista, o facciosismo anticristão nos meios de comunicação, a perda da memória e de uma perspectiva correta quanto ao papel do Cristianismo e da Igreja na história, sobretudo nos temas relativos à fundação do Ocidente, à abolição da escravatura, à importância da matriz cristã para a emergência da ciência moderna, à atitude em face do ambiente e ao revigoramento da idéia democrática. Tratar-se-á apenas de uma das muitas guerras da cultura que, segundo Max Webber, é 'politeísta' de jeito e feição?

É um fato: existe hoje uma ruptura entre o Evangelho e a cultura. A Igreja já há muito deixou de ser a matriz da sociedade e também se vai dando conta de que, no fundo, a 'cristandade' foi, em grande parte, um mito, e de que o Ocidente nunca de todo se deixou cristianizar. A mensagem bíblica, apesar da sua penetração transformadora no espírito ocidental, viveu sempre em tensão com os pressupostos da cultura greco-romana e também com o fundo pagão da alma européia. O panteão desta última nunca ficou de todo vazio sob o domínio e a presença do Deus de Israel e do cristianismo, e hoje, após o colapso das várias "religiões seculares" dos últimos cento e cinquenta anos -nacionalismos, marxismos e comunismos, fascismos- e em pleno torpor metafísico do culto do consumo e da mercadoria, enche-se de novas divindades, algumas delas repristintações caricatas de antigos deuses tribais por grupos neopagãos de europeus ou ocidentais espiritualmente atarantados.

O resultado destre intrincado processo, qua arrasta a civilização inteira, as suas instituições, os grupos e os indivíduos, é a marginalização do Catolicismo, a indiferença perante os seus conteúdos ou o seu anúncio, uma espécie de "extraculturação" sua. Significa esta expressão que as suas referências da Igreja emigraram do campo social, se diluíram na atmosfera cultural dominante, se esfumaram no seu significado ou na sua relevância, se perderam na meio da troada dos inúmeros ruídos que ressoam na nossa atmosfera espiritual.

 Se, como referiu o filósofo e teólogo protestante Schleiemacher, nas primeiras décadas do séxulo XIX, " o cristianismo foi criador de linguagem , foi e é ainda um espírito linguístico potenciador, sem jamais-providencialmente- se ter deixado anexar pela verdade helência", então um dos sintomas mais gravosos do turbulento devir espiritual dos nossos dias é a inintegibilidade cada vez maior com que a mensagem cristã, as alusões, figuras, imagens e expressões bíblicas, litúrgicas e teológicas deparam no discurso comum e, dentro do recinto peculiar da escola, nos ecos da literatura; e ainda a sua insignificância crescente para a consciência individualista, normalizada, cortada de qualquer universidade, do cidadão médio.

Assistimos, depois, à plena tribalização da sociedade, com reflexões também dentro da própria Igreja, onde se multiplicam nas suas posições e se assiste a um certo divórcio entre a hierarquia e o corpo dos fiéis, onde se sente e se vive uma generalizada crise de transmissão, de persistência e de fidelidade ao que foi recebido, devido à ruptura social, à dificuldade de unificação e de harmonia da vida individual nas estruturas sociais de formação escolar, do trabalho, da instituição familiar e do lazer. De fato após a infância e a adolescência, a Igreja quase perde o contato com muitos daqueles que antes catequizara e não chega a uma grande parte das novas gerações justamente na altura em que nelas começam a sedimentar-se as convicções orientadoras da existência.

Por outro lado, a elite intelectual ocidental, no seu halo social e na sua influência midiática, tornou-se cristofóbica, fascinada mas também suspeitosa diante da figura de Jesus de Nazaré que, em contraste com a atitude dominante de respeito ou aceitação tolerante perando outros fundadores de religiões, recebe e desperta em muitos, como resposta ao seu desafio indeclinável, o sarcasmo, a injúria e a construção delirante de biografias ou interpretações da sua pessoa sem qualquer fundamento na realidade histórica e nascidas apenas de uma manipulação imprudente de textos, muito ao sabor da indiferença veritativa da mentalidade pós-moderna e de acordo com os ditames da sua alquimia niilista.

É uma elite intelectual perplexa perante o fenômeno religioso em geral, que ela não consegue, ou nem sempre quer entender bem; e, na situação presente (e perigosa) de recrudescimento anômalo e extra-institucional do religioso, começa a ser estouvada e pouco séria. É uma elite ferida e ressabiada, porventura cheia de ressentimento ou marinar de niilismo, após o fiasco de todas as aventuras da ideologia moderna, de direita ou de esquerda, burguesa ou revolucionária, que desaguaram em formas totalitárias e violentas.

Compreende-se assim o seu pasmo em face de um objeto hermenêutico estriado, como é o cristianismo nas suas múltiplas formas históricas, ou perante a imensa ambiguidade civilizacional do Catolicismo com o seu peso institucional, o seu exercício da autoridade, as suas aparentes inércias e também a sua capacidade inegável e invejável de superar crises. A tentação é então fornecer interpretações simplistas e predominantemente pejorativas, exagerar as sombras ou as manchas (que também são reais), admitir por vezes um injustificável e falso determinismo noético (os famosos efeitos autoritários do "monoteísmo"!), ocultar e silenciar as realizações culturais genuínas ou ignorar o marco condicionante, estruturador ou estimulador do cristianismo e da Igreja que indiretamente, com o seu imaginário, fertilizou a fantasia e levou à concepção e à criação de grandes obras culturais de conteúdos muito diversos.

Há mesmo quem se arme em profeta e afirme que o cristianismo, tal como o marxismo, teria já tido o seu tempo (mas aqui confunde-se o nosso tempo curto com o tempo longo, as conjunturas econômicas, as correntes sociais e os fatos políticos do presente com a longa duração, com a teimosa e exasperante sobrevivência das crenças); ou que ele caminha para seu termo, dada a queda vertiginosa da prática religiosa daqueles que se dizem católicos (mas também aqui a afirmação da iminente situação minoritária do cristianismo não passa de "wishful thinking" e é refutada pelos dados e estatísticas, contrasta à realidade dos laços intermitentes que unem ainda muitos à Igreja na celebração dos grandes momentos da existência -nascimento, matrimônio, batismo e morte).

Há igualmente quem continue aferrado ao dissídio ou à contradição entre fé e razão, na senda de Diderot, Voltaire, Condorcet, Paine e Comte e de muitos outros, mas tratam-se de mamutes epistemológicos, soletrando epigonalmente a cartilha do Iluminismo, do seu "intelecto celibatário", guiado pelos interesses subjetivos e pela paixão do poderio e da dominação, separado da torrente multidimensional e multinivelada da vida que ninguém controla ou cognitivamente abarca. Não atendem aos inúmeros matizes da nossa linguagem perita em muitos usos e gêneros de discurso, radicada nas múltiplas formas de vida com seus pressupostos , suas regras, seus consensos, e escapa-lhes que a nossa racionalidade, mesmo a científica, está adstrita à tradições. E, bem vistas as coisas, dão provas de uma falta de atenção e de sensibilidade cultural ao que hoje acontece, pois o tema das relações entre ciência e religião, ciência e fé cristã, é agora um campo de intensíssima e fecunda reflexão, e até dos mais ativos e promissores (e claro, dentro no inesperado e surpreendente desvelamento ôntico e factual da complexidade misteriosa do universo) por parte de muitas ciências.

É por esta e outras razões que uma História da Igreja tem importância cultural. Nada saber, por exemplo, da questão socrática ou platônica, da revolução copernicana, da crise das ciências no final do século XIX, das principais obras literárias do "cânone ocidental" (Harold Bloom), das grande obras musicais ou pictórias, do estilo barroco ou do expressionismo, da teoria da relatividade, do código genético e do princípio antrópico e etc, é um sintoma indiscutível  de profundas lacunas no âmbito da cultura. E não saber situar as verdadeiras raízes dos direitos humanos, do sujeito moderno, da emancipação da mulher, da separação entre religião e política, do núcleo forte da idéia democrática, da origem, do desenvolvimento e dos gêneros literários da Bíblia, das suas formas, da sua redação ou da sua influência e dos seus ecos nas literaturas européias - o que seria?

Se a história como diz Sir Owen Chadwick, reputado historiador do cristianismo, "mais do que qualquer outra disciplina liberta a mente da tirania da opinião presente", então um conhecimento ao menos moderado de História da Igreja pode servir de remédio e de correção a muitas opiniões falsas, difundidas no espaço público, nos meios de comunicação, no jornalismo e nas falanges de uma intelectualidade, por vezes, preguiçosa no que toca ao conhecimento do objeto de sua crítica ou do seu ataque.


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Pequeno excerto introdutório de autoria do Artur Morão (Dr emFilosofia) na obra História da Igreja dos autores J. Derek Holmes e Bernard W. Bickers.