sábado, 2 de maio de 2015

A Religiosidade do Irreligioso


A filosofia na Grécia nasce com o problema da origem do mundo e do princípio primeiro de todas as coisas. A interpretação mítica constitui inicialmente a característica predominante dos povos antigos para explicação de diversos fenômenos da natureza. Seu nascimento desenvolve-se acompanhado de significação religiosa que se expressa através de representações fantasiosas e não racionais, permanecendo sempre, portanto, aquém do logos.

O homem se sente circundado por forças ocultas e misteriosas que não consegue compreender, sendo levado assim a forjar divindades que personificam os elementos e fenômenos da natureza (politeísmo antropomórfico). Esse naturalismo místico-religioso constitui a primeira resposta para problemas que serão posteriormente formulados e discutidos de forma mais rigorosa com o advento da filosofia. Nesse sentido o mito talvez possa ser compreendido como uma espécie de protótipo da teologia.

Porém quando se fala de religião grega é necessário distinguir claramente entre religião pública e religião dos mistérios. A religião pública é essencialmente antropomórfica e naturalista. Os deuses seriam forças naturais calcadas em formas humanas idealizadas e personalizadas; não sendo intenção deles santificar o homem ou elevá-lo acima dele mesmo. As divindades não exigiam mudança íntima do modo de pensar humano, nem qualquer tipo de luta contra suas tendências naturais e impulsos. Ao contrário, tudo que para o homem é natural, vale diante da divindade como legítimo. O homem mais divino seria, portanto, aquele que cultiva com mais empenho suas forças humanas, agindo conforme a sua própria natureza. Outra característica da religião pública é não ser revelada, mas natural. Não havia, portanto, livros sagrados considerados frutos de revelação divina ou qualquer dogmática fixa e imutável. Tal ausência abriria espaço à liberdade da especulação filosófica e permite-nos constatar que inicialmente a religião pública exerceria grandes influências sobre as reflexões dos filósofos gregos.

Por outro lado, na religião dos mistérios conhecida também pelo nome de orfismo, o homem possui um princípio divino, um ‘demônio’ (daimônion) unido ao corpo por causa de uma culpa original. Tal daimônion sobrevive à morte do corpo e sendo imortal passaria através de metempsicose por uma série de reencarnações (ou reanimações) até expiar completamente a sua culpa; processo alcunhado também como “roda de nascimentos” cujo o aspirante a sábio e filósofo ambiciona se livrar. A vida órfica e suas práticas de purificação seriam, portanto, o caminho para por fim a esse ciclo, uma vez que não haveria necessidade de reencarnação após ter-se atingido um determinado estado de perfeição e felicidade. Já os demais homens impuros estariam ainda condenados a posteriores reencarnações.

Nota-se aqui que o orfismo tem, portanto, uma visão negativa da existência humana, tendo-a como uma punição ou castigo por uma injustiça cometida em outras vidas; bem como uma visão pessimista a respeito da dimensão corpórea do ser humano que seria como uma espécie de cárcere e prisão da alma.

Vê-se, com efeito, que a principal diferença entre a religião pública e dos mistérios diz respeito às relações entre alma e corpo. Enquanto a religião pública tem uma concepção unitária da alma e do corpo, a dos mistérios professa uma concepção dualista. A consequência imediata da religião dos mistérios é, portanto, a imposição de uma ascese rigorosa para livrar-se ao máximo das influências negativas da corporeidade de forma a transcender a matéria. Tais exigências de ascese como processo de purificação inexistem nas religiões públicas.

Entretanto a tendência a dar estruturação mítica ao pensamento não é exclusividade da religião, mas acompanha outras expressões do comportamento humano. Ainda hoje é possível observar a tendência de construção de mitos em torno da política, dos esportes, da música, entre outras áreas. Ao mesmo tempo em que se avança o processo de secularização da sociedade, irrompe a construção de novos mitos e deuses modernos. Essa peculiaridade será apontada por Mircea Eliade como veremos mais a diante; bem como explorada, aprofundada e estendida para outras significações mais amplas pelo filósofo canadense Charles Taylor em suas famosas obras “Uma era Secular” e “Ética da Autenticidade”.

O fenômeno religioso é de fato muito estudado tanto pela filosofia, como por outras ciências na tentativa de explorar metodicamente a consciência religiosa concreta e suas múltiplas objetivações na história; visando assim elucidar a questão da possibilidade e essência formal da religião na existência humana. A consciência do homem e sua autocompreensão a partir do absoluto, bem como a abertura do homem para o mistério que viabiliza uma relação direta do ser humano com o numinoso, são, pois, objetos de estudo e intensa reflexão por Mircea Eliade.

Dissecar a realidade do homo religiosus implica tocá-lo em sua raiz ontológica, na medida em que se procura adentrar e compreender seu princípio primeiro e fundamento último. Tenciona e engloba, dessa forma, a pessoa como um todo; no seu modo próprio de ser de existência religiosa. A religião realiza-se, portanto, na própria existência humana. A partir do divino, o homem religioso sabe-se determinado a algo maior que ele mesmo; tomando atitudes de quem se sente desafiado, de quem experimenta um apelo.

Nesse sentido do sentir e da experiência religiosa como um todo, é possível remeter-se também à Rudolf Otto que já analisara como as pessoas percebem e reagem diante do sagrado em suas múltiplas manifestações nos diferentes credos de diversas religiões. Sua análise propõe a realidade apriorística do numinoso em diversos elementos racionais e, sobretudo irracionais, cujos principais aspectos são descritos nas categorias do Mysterium Tremendum, isto édo tremendum (arrepiante), majestas (avassalador) e mysterium (o “totalmente outro”). O numinoso seria dessa forma, um mistério terrível, assombroso e fascinante ao mesmo tempo e que não seria localizável ou racionalmente dedutível em sua origem última. Para Otto seriam, portanto, as experiências diante do sagrado que em última análise fundamentariam a religião.

No entanto, Eliade propõe uma perspectiva mais ampla, ao apresentar o fenômeno do sagrado em toda sua complexidade e não apenas no que ele comporta de irracional. Sua preocupação não está em como se relacionam os elementos racionais e irracionais, mas sim no sagrado na sua totalidade.

A rotura na homogeneidade do espaço e revelação de uma realidade absoluta estabelece um ponto fixo, um centro e uma referência para o homem religioso. Esse fenômeno, chamado de hierofonia, será uma experiência primordial, por ser capaz de reordenar toda a vida de um indivíduo. A existência de um espaço significativo no qual há irrupção do sagrado corresponde a uma verdadeira fundação ontológica do mundo que adquirirá, portanto, valor cosmogônico de orientação.

Na existência profana, no entanto, o espaço é homogêneo e neutro. Não há roturas ou quaisquer diferenciações qualitativas de suas partes, dada sua recusa da sacralidade do mundo. Já não há ponto fixo ou qualquer lugar que goze de estatuto ontológico do mundo, apenas uma enorme massa amorfa de lugares diversos. A relatividade e continuidade do espaço são, pois, sua consequência direta, extinguindo a condição de possibilidade de quaisquer teofanias que demarcariam o limiar do espaço consagrado em que seria possível transcender o mundo profano.

A falta de orientação da existência profana implica assim na experiência de uma tensão provocada pela falta de certezas apodíticas que para o homo religiosus são reveladas por uma instância superior. Na posse delas, o homem religioso se esforça por manter-se nesse ponto fixo, nesse centro do mundo, pois só consegue viver em uma atmosfera impregnada do sagrado. Seu desejo de por fim a experiências meramente subjetivas que poderiam levá-lo a ilusões ou a perda de tempo tem, portanto, relação direta em quere situar-se nessa realidade objetiva e assim viver num mundo santificado, real e eficiente. Com efeito, para o religioso, o sagrado é o real por excelência.

É necessário, porém, ressaltar que em Eliade a existência profana dificilmente se encontra em estado totalmente puro personificada num indivíduo. Mesmo o homem que recusa abertamente a existência do sagrado, não consegue abolir completamente o comportamento religioso. Dessa forma, a maioria dos que hoje se declaram “sem religião” teriam comportamentos religiosos ainda que de forma inconsciente.

Eliade vê o homem profano como um indivíduo atarantado por todo um aparato mágico-religioso, porém expresso através de uma mitologia camuflada, com numerosos ritualismos degradados até a caricatura e por isso irreconhecíveis. Com efeito, o processo de dessacralização da existência humana se expressaria em tantas formas híbridas que permitiriam afirmar que o homem profano descende do próprio homo religiosus, não podendo assim anular e negar o comportamento dos seus antepassados que influenciaram e ajudaram a constituí-lo tal como ele é hoje na sua irreligiosidade.

Exatamente por isso seria necessário redescobrir a importância das imagens e principalmente dos símbolos, reconhecendo-os em suas relações com os diversos elementos presentes na modernidade. Modernidade essa classificada como líquida em Zygmunt Bauman, dada a fluidez, liquidez e volatilidade de incerteza e insegurança provenientes ausência de referências morais que existiam outrora mas que foram recentemente solapadas pelo processo de secularização; dando assim amplo espaço à lógica do agora, do consumo, do gozo e a da artificialidade.

As imagens, os símbolos e os mitos não seriam assim tolas criações irresponsáveis do psiquismo do homem primitivo, mas corresponderiam para Eliade a uma necessidade universal do homem, ao preencher a função de revelar as modalidades mais secretas do ser. O pensamento simbólico seria, portanto, algo intrínseco do ser humano e estudá-lo seria primordial para se conhecer melhor o homem e assim se aproximar mais de sua própria humanidade.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Eros, satisfação e melancolia

                    
                                        (Hopper- Excursion into Philosophy)

A resistência argumentativa dos mais diversos posicionamentos em matéria de moralidade sexual tem ligação estreita com a necessidade humana de calar ou justificar-se perante a própria consciência. O contorcionismo intelectual empregado para negar certas verdades está constantemente enraizado mais em aspectos psicológicos de seus defensores do que com a robustez e sinceridade da verdade objetiva dos argumentos. A tese aqui defendida é exigente, porém acredita-se que seja a única antropologicamente correta. Existem muitas formas de combinar as peças que compõe a sexualidade humana porém apenas uma delas é capaz de humanizar o ser humano.

Elevar e integrar o sexo com a inteligência, vontade e sentimentos é humanizá-lo conforme a integralidade do homem que engloba não apenas sua natureza corpórea mas também espiritual. Isso só é possível quando todos os elementos que compõe a sexualidade humana estão presentes de forma harmônica. A combinação dos fatores; diferenciação, complementaridade, fecundidade e amor; só é possível dentro família tradicional de fundação matrimonial. Querendo ou não, a natureza humana é imutável nesse aspecto e de qualquer outra forma perde-se tempo.

Apesar do mundo caminhar a passos largos rumo a normatização do homossexualismo, da pedofilia e da aceitação plena do sexo despojado do eros e da fecundidade; a família tradicional continua sendo o projeto vital das pessoas de boa vontade. A tentativa de equipará-la à diversas outras agremiações existentes é decepcionante, entre outros motivos, por não se coadunar com o anseio humano de transcendência e infinitude.

O casal é um verdadeiro agente de transcendência. Carrega dentro de sua própria natureza um poder criador que só é possível como obra de um Absoluto ou participação Nele. É verdadeiramente surpreendente que de duas intimidades surja uma terceira jamais antes criada, irrepetível. Os pais deveriam se perguntar "Por que foi gerado esse filho e não outro?". Todo filho é, pois, um dom, um mistério e uma surpresa. A sacralidade do sexo está, com efeito, intimamente ligada à sacralidade da vida. Deixa de ser, portanto, meramente um ato biológico, para ser um verdadeiro exercício de transcendência, pois é uma real participação na força criadora. Deveria ser um verdadeiro escândalo que não nos admiremos frente uma realidade que clama forças superiores e divinas. A negação desse deslumbramento dá origem a uma explicação fria, positivista e incoerente para o surgimento da vida; pois a matéria não é condição de possibilidade do surgimento de uma nova vida.

A relação sexual está, portanto, naturalmente ordenada para a procriação da mesma forma que o ato de alimentar-se está para nutrição. Despojar artificialmente o sexo da fecundidade é, pois, como comer e vomitar. Atua-se hoje desse modo porque vivemos em uma cultura que vê o filho como uma cruz, uma desgraça e agindo dessa forma torna-se impossível unir o sexo ao eros, uma vez que separado da fecundidade.

O amor tende naturalmente a ser fecundo e o eros implica doação total e absoluta; que não pode ser manifesta quando há falta de confiança e reservas internas à ideia de uma vida compartilhada com o outro. No eros encontra-se de repente uma pessoa em particular que é bela e amável como nenhuma outra e que precisamente por isso, torna-se alguém sem a qual a nossa felicidade se apresenta como impossível. O enamorado quer a enamorada por si mesma não pelo prazer que lhe possa proporcionar. A atração física não é primária. O eros é, pois, uma forma de relação interpessoal na qual a sexualidade humana adquire seu sentido. O eros atua portanto como amor-dádiva-necessidade; uma afirmação do outro que tende para união com ele. No eros uma pessoa concreta, única e irrepetível se converte no meu projeto pessoal de vida. 

O processo que dá surgimento a esse fenômeno, chamado de 'enamoramento' é algo que apesar de ser possível cultivar, não é possível criar, pois simplesmente nos acontece, é algo gratuito e imerecido. Quem está no eros prefere partilhar o infortúnio com o ser amado do que tentar ser feliz de qualquer outra maneira. Por isso que o sexo vivenciado sem o eros é como um sorriso falso, uma careta, uma máscara. Da mesma forma que o sorriso deveria representar alegria; a entrega corporal deveria representar uma entrega total e não apenas a satisfação de um instinto. Sem o eros ter-se-ão, portanto, experiências sensíveis mas não interiores.

O eros apesar de nunca perder a atitude contemplativa da pessoa amada, deve, no entanto,  converter-se em amor como tarefa. O sexo está para o amor e não o amor para o sexo. Somente dentro do amor conjugal ele deixa de ser tirânico porque não pode produzir por si mesmo diversos elementos sem o qual o eros se extingue. Por isso que a vida sexual levada a serio facilmente decepciona, deve ser portanto desinteressada, porém não banalizada, para não correr o risco de vir a ser melancólica.