domingo, 12 de maio de 2013

Seriedade da morte e sua presença em cada ato de vida


Em cada época houve quem quisesse convencer a si mesmo e aos outros de que, diante da morte, não vale a pena se afligir com temores e tremores; e houve quem fizesse disso o problema essencial do homem. Para Nietzsche, que, como diz Jaspers, "absolutiza a vida" e "naturaliza" a morte, esta última é "a maior banalidade" que poderia no máximo interessar à "grei" dos homens; no processo cósmico, cuja lei é o "eterno retorno", o morrer é um acidente do "fato", muito embora aceitá-lo ou desafiá-lo sem esperança seja a única qualificação de "valor" da existência.

Pode-se lhe contrapor Unamuno de Amor y Pedagogia, para quem o único problema essencial é o da morte: não se preocupar com ele é não viver, porque "vivir es anelar la vida eterna". Nem se pode negar-lhe a razão: uma existência sem o pensamento da morte é falsa, sofisticada, inautêntica, porque fora da condição humana; submetida ao instinto. Não se pode viver existindo, isto é, com a "consciência" de viver, sem saber que vai morrer, nem se pode "banalizar" a morte sem banalizar a vida.

Expulsar a própria morte da consciência imediata ou reflexa é "fugir" para uma estulta "diversão", ou para uma banal "distração". Não pensar na morte não significa pensar mais intensamente na vida; ao contrário, é "distrair-se" da própria vida; e quem não pensa na vida afirma a morte e, com isso mesmo, a nega inteiramente. O vínculo dialético que une a vida, a morte e existência, implicando-as, não é acidental: a existência é vida e morte, morte porque vida, vida porque morte. Não dois "contrários", porque a morte, contrário da vida natural, não o é da existência espiritual, de cuja imortalidade é, antes, a condição essencial.

Tudo indica a profunda seriedade da morte: a indiferença ou ceticismo por ela recaem sobre a vida. Não se pode desvalorizar a morte sem cair violentamente numa ingênua contradição, sem acrisia e superficial dogmatismo: David Hume que, moribundo, fazia piadas sobre a morte, equiparou-se ao seu radical fenomenismo, mas se pôs abaixo da sua dignidade de homem.

Não raro este desprezo é somente pose, vaidade. Quem se ufana de demonstrar que morrer é algo de pouca monta ou indiferente encontrou um modo para dizer veladamente que no íntimo está convicto do contrário. Há diferença, escreve La Rochefoucauld, "entre o suportar a morte com firmeza e o desprezá-la: o primeiro caso é bastante frequente, o segundo não é, jamais, um exemplo de sinceridade"; nem mesmo de coragem e de racionalidade enquanto que, por muitos que seja os motivos para fugir à vida, nenhum constitui uma razão válida para desprezar a morte.

Outro é a "aceitação" consciente, que é a avaliação positiva e reconhecimento da sua seriedade; de fato, o cristão não a despreza e de modo algum lhe é indiferente; pode também desejá-la com a alma, mas justamente este desejo lhe confirma todo valor. "Sabê-la" desejar é algo bem diferente que suportá-la com firmeza "estoica": aqui há só a prova de uma virtude humana, lá uma presença religiosa que torna "verdadeira" esta virtude.

Vários são os modos de desvalorizar ou minimizar a morte e o valor humano e filosófico do problema, mas todos subentendem um ceticismo subterrâneo ou manifesto, que não leva nada a sério, menos ainda a morte, um dos tantos acidentes da existência, toda ela inessencial. No fundo, não se desvaloriza a morte como tal, mas enquanto acontecimento da vida, o último de uma série inteira sem valor.

Tal ceticismo pode endossar hábitos aparentemente resignados ou simples; por exemplo, este: "vive abandonado às leis naturais sem pensares na morte". Quem assim aconselha não somente suprime a consciência da morte, mas o pensamento enquanto tal: "viver sem pensar, sem refletir sobre o dia que vives, deixa-te levar espontaneamente pelo curso da vida". Um poeta, que se vangloria de ter vivido assim, maravilha-se de que a morte "tenha ousado pensar nele", que jamais havia pensado nela: a morte, mais inteligente, o restitui à sua consciência e conferiu à sua vida dignidade humana.

Esta forma de desprezo ou descuido difere só em parte de outra, que parece antiética e que se fundamenta sobre  uma tese metafísica: "pensa com a consciência de não morrer jamais, porque o pensamento é eterno". É a tese idealista já acenada, que coerentemente fez Gentile dizer que morrem os eu, mas o Eu é imortal.(...)

A tese idealista- e também plotiniana, averroísta, espinosiana- subentende uma afirmação errônea: pensar, pensando ou não pensando a morte, não muda nada. Tudo, porém, conforme se pense pensando que se vai morrer, ou como se isso não acontecesse, ao ponto de pensar sem pensar que vai morrer, é pensar sem pensar que existe o mundo.

A morte é problema do homem inteiro. Argumento de indagação filosófica não é o morrer como fato empírico ou de observação, este ou aquele morto, mas se o homem morre todo, morre também a consciência com a qual sabe que vai morrer. Mais exatamente: se morre o pensamento com o qual pensa a morte sem o qual a própria morte não existiria; o animal não sabe que vai morrer, só o homem o sabe, como observa Voltaire antes de tantos outros. Por enquanto, coloquemos os termos do problema: se eu não fosse espírito, a morte para mim não existiria, haveria somente corrupção do meu corpo; ela existe somente enquanto tenho consciência, sei que vou morrer. Entao: pode morrer o pensamento para o qual a morte existe? Aquele que a faz ser pode lhe estar sujeito? O homem, cada um em particular, e a vida como tal são uma universal condenação a morte? Por ora, um primeiro ponto fixo: a consciência faz com que, para o homem, e só para ele, a morte existe: mas isto nos deixa entrever que admitir o fim da consciência pensante é desafiar a contradição e aceitar o absurdo. Trata-se de saber se a morte envolve também a consciência pela qual existe- e como ato consciente é ato de vida consciente-, ou se ela é a consciência de que morre o corpo, o organismo ou o animal, mas não a própria consciência que consciente dele e por qual o fim do organismo também é "morte" e não somente "corrupção".


(Michele Federico Sciacca)