Em tempos de amnésia e de ignorância história programada,
de
deterioração da línguagem e do pensamento, em que se encontra amplamente
perdidas ou assaz indistintas (na consciência do público em geral e,
sobretudo, das gerações mais jovens) as coordenadas do passado, as
raízes e a
configuração multissecular da nossa cultura, é sempre oportuno e
benéfico revisitar as suas origens, aperceber-se do seu perfil profundo e
bem marcado, mesmo que seja através do percurso cronológico, sinuoso e
constrastado, por vezes indecoroso, de uma das instituições que mais
marcaram a Europa, que mais a desafiaram, que mais a perturbam: a Igreja
Católica.
Sabemos que a memória, por natureza, é já
seletiva nos seus processos e nos seus objetos. Mas custa-nos
reconhecer, resistimos a confessar que ela, quando nossa, se torna
unilateral, partidarista, deformadora e falsa na obediência e na
rendição a preferências subjetivas, sejam estas de hostilidade renitente
ou de adesão apaixonada. Muitas vezes, porém, nem sequer chega a ser
memória, mas antes um novelo de dados isolados e desconexos, de notícias
soltas, de suposições nevoentas, de preconceitos ociosos, de argumentos
acríticos. E como já argutamente, na segunda metade do século XIX,
reconhecia o Cardeal John Henry Newman - "quando a lógica falha, os homens tornam-se pessoais;
é seu modo de apelar para os seus elementos primários do pensamento,
para seu sentido ilativo, contra os princípios e juízos de outrem" - ou
seja, quanto menor é o conhecimento efetivo de um objeto, tanto maior é a
força com o que o elemento subjetivo e arbitrário irrompe na
consciência e na expressão a seu respeito, tanto maior também a margem
de erro e de falsidade do discurso.
E se o objeto do
juízo histórico (e da memória expressa) de muitos for, por exemplo, o
cristianismo ou o Catolicismo? Então o caso agrava-se, pois esta
entidade institucional, mais antiga do que todas as nações européias,
com tamanha história, com tantos efeitos e influências culturais, com
todas as marcas das fraquezas e das contradições humanas e com a
revindicação da sua missão divina, a ninguém permite neutralidade ou indiferença.
Historiadores
há, como René Remond, que constatam na Europa, nas últimas três
décadas, um aumento, aparentemente orquestrado e nutrido nos meios de
comunicação, do descrédito do cristianismo, sobretudo da Igreja
Católica, especialmente no plano intelectual. René Remond chega mesmo a
falar de uma "cultura de desprezo", de um conformismo
generalizado no sarcasmo ou na irrisão em face do Catolicismo, contra o
qual todos os insultos são permitidos na imprensa, na televisão, na
literatura, nas novelas históricas, no cinema, nas artes plásticas e
performativas, enquanto se nota uma maior consideração e deferência
perante outras grandes religiões como o judaísmo, o islamismo e
sobretudo o budismo.
Nos EUA, dois autores, Vincent
Carroll e David Shiflett, denunciaram também, há pouco, no contexto do
politicamente correto e de um secularismo militante e fundamentalista, o
facciosismo anticristão nos meios de comunicação, a perda da memória e
de uma perspectiva correta quanto ao papel do Cristianismo e da Igreja
na história, sobretudo nos temas relativos à fundação do Ocidente, à
abolição da escravatura, à importância da matriz cristã para a
emergência da ciência moderna, à atitude em face do ambiente e ao
revigoramento da idéia democrática. Tratar-se-á apenas de uma das muitas
guerras da cultura que, segundo Max Webber, é 'politeísta' de jeito e
feição?
É um fato: existe hoje uma ruptura entre o Evangelho e a cultura.
A Igreja já há muito deixou de ser a matriz da sociedade e também se
vai dando conta de que, no fundo, a 'cristandade' foi, em grande parte,
um mito, e de que o Ocidente nunca de todo se deixou cristianizar. A
mensagem bíblica, apesar da sua penetração transformadora no espírito
ocidental, viveu sempre em tensão com os pressupostos da cultura
greco-romana e também com o fundo pagão da alma européia. O panteão
desta última nunca ficou de todo vazio sob o domínio e a presença do
Deus de Israel e do cristianismo, e hoje, após o colapso das várias
"religiões seculares" dos últimos cento e cinquenta anos -nacionalismos,
marxismos e comunismos, fascismos- e em pleno torpor metafísico do
culto do consumo e da mercadoria, enche-se de novas divindades, algumas
delas repristintações caricatas de antigos deuses tribais por grupos
neopagãos de europeus ou ocidentais espiritualmente atarantados.
O resultado destre intrincado processo, qua arrasta a civilização inteira, as suas instituições, os grupos e os indivíduos, é a marginalização do Catolicismo, a indiferença perante os seus conteúdos ou o seu anúncio,
uma espécie de "extraculturação" sua. Significa esta expressão que as
suas referências da Igreja emigraram do campo social, se diluíram na
atmosfera cultural dominante, se esfumaram no seu significado ou na sua
relevância, se perderam na meio da troada dos inúmeros ruídos que
ressoam na nossa atmosfera espiritual.
Se,
como referiu o filósofo e teólogo protestante Schleiemacher, nas
primeiras décadas do séxulo XIX, " o cristianismo foi criador de
linguagem , foi e é ainda um espírito linguístico potenciador, sem
jamais-providencialmente- se ter deixado anexar pela verdade helência", então um dos sintomas mais gravosos do turbulento devir espiritual dos nossos dias é a inintegibilidade cada
vez maior com que a mensagem cristã, as alusões, figuras, imagens e
expressões bíblicas, litúrgicas e teológicas deparam no discurso comum
e, dentro do recinto peculiar da escola, nos ecos da literatura; e ainda
a sua insignificância crescente para a consciência individualista,
normalizada, cortada de qualquer universidade, do cidadão médio.
Assistimos,
depois, à plena tribalização da sociedade, com reflexões também dentro
da própria Igreja, onde se multiplicam nas suas posições e se assiste a
um certo divórcio entre a hierarquia e o corpo dos fiéis, onde se sente e
se vive uma generalizada crise de transmissão, de persistência e de
fidelidade ao que foi recebido, devido à ruptura social, à dificuldade
de unificação e de harmonia da vida individual nas estruturas sociais de
formação escolar, do trabalho, da instituição familiar e do lazer. De
fato após a infância e a adolescência, a Igreja quase perde o contato
com muitos daqueles que antes catequizara e não chega a uma grande parte
das novas gerações justamente na altura em que nelas começam a
sedimentar-se as convicções orientadoras da existência.
Por
outro lado, a elite intelectual ocidental, no seu halo social e na sua
influência midiática, tornou-se cristofóbica, fascinada mas também
suspeitosa diante da figura de Jesus de Nazaré que, em contraste com a
atitude dominante de respeito ou aceitação tolerante perando outros
fundadores de religiões, recebe e desperta em muitos, como resposta ao
seu desafio indeclinável, o sarcasmo, a injúria e a construção delirante
de biografias ou interpretações da sua pessoa sem qualquer fundamento
na realidade histórica e nascidas apenas de uma manipulação imprudente
de textos, muito ao sabor da indiferença veritativa da mentalidade
pós-moderna e de acordo com os ditames da sua alquimia niilista.
É
uma elite intelectual perplexa perante o fenômeno religioso em geral,
que ela não consegue, ou nem sempre quer entender bem; e, na situação
presente (e perigosa) de recrudescimento anômalo e extra-institucional
do religioso, começa a ser estouvada e pouco séria. É uma elite
ferida e ressabiada, porventura cheia de ressentimento ou marinar de
niilismo, após o fiasco de todas as aventuras da ideologia moderna, de direita ou de esquerda, burguesa ou revolucionária, que desaguaram em formas totalitárias e violentas.
Compreende-se
assim o seu pasmo em face de um objeto hermenêutico estriado, como é o
cristianismo nas suas múltiplas formas históricas, ou perante a imensa
ambiguidade civilizacional do Catolicismo com o seu peso institucional, o
seu exercício da autoridade, as suas aparentes inércias e também a sua capacidade inegável e invejável de superar crises.
A tentação é então fornecer interpretações simplistas e
predominantemente pejorativas, exagerar as sombras ou as manchas (que
também são reais), admitir por vezes um injustificável e falso
determinismo noético (os famosos efeitos autoritários do "monoteísmo"!),
ocultar e silenciar as realizações culturais genuínas ou ignorar o
marco condicionante, estruturador ou estimulador do cristianismo e da
Igreja que indiretamente, com o seu imaginário, fertilizou a fantasia e
levou à concepção e à criação de grandes obras culturais de conteúdos
muito diversos.
Há mesmo quem se arme em profeta e
afirme que o cristianismo, tal como o marxismo, teria já tido o seu
tempo (mas aqui confunde-se o nosso tempo curto com o tempo longo, as
conjunturas econômicas, as correntes sociais e os fatos políticos do
presente com a longa duração, com a teimosa e exasperante sobrevivência das crenças);
ou que ele caminha para seu termo, dada a queda vertiginosa da prática
religiosa daqueles que se dizem católicos (mas também aqui a afirmação
da iminente situação minoritária do cristianismo não passa de "wishful thinking"
e é refutada pelos dados e estatísticas, contrasta à realidade dos
laços intermitentes que unem ainda muitos à Igreja na celebração dos
grandes momentos da existência -nascimento, matrimônio, batismo e
morte).
Há igualmente quem continue aferrado ao
dissídio ou à contradição entre fé e razão, na senda de Diderot,
Voltaire, Condorcet, Paine e Comte e de muitos outros, mas tratam-se de mamutes epistemológicos, soletrando epigonalmente a cartilha do Iluminismo,
do seu "intelecto celibatário", guiado pelos interesses subjetivos e
pela paixão do poderio e da dominação, separado da torrente
multidimensional e multinivelada da vida que ninguém controla ou
cognitivamente abarca. Não atendem aos inúmeros matizes da nossa
linguagem perita em muitos usos e gêneros de discurso, radicada nas
múltiplas formas de vida com seus pressupostos , suas regras, seus
consensos, e escapa-lhes que a nossa racionalidade, mesmo a científica, está adstrita à tradições.
E, bem vistas as coisas, dão provas de uma falta de atenção e de
sensibilidade cultural ao que hoje acontece, pois o tema das relações
entre ciência e religião, ciência e fé cristã, é agora um campo de
intensíssima e fecunda reflexão, e até dos mais ativos e promissores (e
claro, dentro no inesperado e surpreendente desvelamento ôntico e
factual da complexidade misteriosa do universo) por parte de muitas
ciências.
É por esta e outras razões que uma História
da Igreja tem importância
cultural. Nada saber, por exemplo, da questão socrática ou platônica, da
revolução copernicana, da crise das ciências no final do século XIX,
das principais obras literárias do "cânone ocidental" (Harold Bloom),
das grande obras musicais ou pictórias, do estilo barroco ou do
expressionismo, da teoria da relatividade, do código genético e do
princípio antrópico e etc, é um sintoma indiscutível de profundas
lacunas no âmbito da cultura. E não saber situar as verdadeiras raízes
dos direitos humanos, do sujeito moderno, da emancipação da mulher, da
separação entre religião e política, do núcleo forte da idéia
democrática, da origem, do desenvolvimento e dos gêneros literários da
Bíblia, das suas formas, da sua redação ou da sua influência e dos seus
ecos nas literaturas européias - o que seria?
Se a história como diz Sir Owen Chadwick, reputado historiador do cristianismo, "mais do que qualquer outra disciplina liberta a mente da tirania da opinião presente",
então um conhecimento ao menos moderado de História da Igreja pode servir de
remédio e de correção a muitas opiniões falsas, difundidas no espaço
público, nos meios de comunicação, no jornalismo e nas falanges de uma
intelectualidade, por vezes, preguiçosa no que toca ao conhecimento do
objeto de sua crítica ou do seu ataque.
***
Pequeno
excerto introdutório de autoria do Artur Morão (Dr emFilosofia) na obra
História da Igreja dos autores J. Derek Holmes e Bernard W. Bickers.